Do suflê à mousse ‘Kolynos’: receitas de Eunice Paiva’, de ‘Ainda estou aqui’, contam história da família e de uma época

Talentos culinários da advogada são destacados no longa dirigido por Walter Salles; filhos ainda guardam menu que a mãe preparava todo Natal A atuação silenciosa de Fernanda Montenegro, na pele de uma Eunice Paiva já debilitada pelo Alzheimer, é certamente o que há de mais impressionante na sequência final de “Ainda estou aqui”, filme de Walter Salles que é a esperança do Brasil no Oscar. Espectadores mais atentos, porém, devem ter reparado que a cena que retrata uma festa de família homenageia não só a luta de Eunice para preservar a memória de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura, mas também seus dotes culinários. A advogada que se notabilizou por defender os povos indígenas era uma cozinheira talentosa e tinha mão boa para tortas (e pavor de engordar). Não à toa, nessa cena os filhos lamentam ter fracassado na tentativa de assar o inesquecível suflê da matriarca.
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O famoso suflê de queijo de “Dona Eunice” é reverenciado no capítulo “Já falei do suflê?”, do livro “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, e mencionado outras quatro vezes no filme. Ainda nas primeiras cenas, Eunice (interpretada por Fernanda Torres, vencedora do Globo de Ouro de melhor atriz dramática) pede à filha mais velha, Vera, que “trate de não sumir porque hoje eu vou fazer suflê”. Em outro trecho, a família recebe uma carta de Vera, que passava uma temporada em Londres e confessa sentir “saudade” do suflê. Quando ela retorna ao Rio, a mãe lamenta não ter podido recebê-la com o prato. Ao ser levado pela polícia da ditadura, Rubens tenta acalmar a mulher dizendo: “Volto a tempo para o suflê”.
Três dos cinco filhos do casal Paiva — Eliana, Ana Lúcia (Nalu) e Maria Beatriz (Babiu) — confirmaram ao GLOBO que o caderno de receitas de Eunice realmente se perdeu. Quando a mãe ainda era viva, Eliana digitalizou algumas páginas, enviadas à reportagem. E Nalu copiou a receita do suflê.
Receita do suflê de Eunice Paiva, mencionado em “Ainda estou aqui”
Reprodução
O “suflê de queijo (mamãe)”, conforme se lê na cópia da filha, leva queijo parmesão ralado (“Era o único queijo ralado que existia no Brasil na época”, recorda Nalu), manteiga, leite, farinha de trigo, ovos, sal e pimenta. “Se quiser”, dá para acrescentar presunto “bem picadinho” ou champignon. O segredo são as claras em neve, que devem ser feitas preferencialmente na batedeira para ficarem bem firmes, pois são elas que darão consistência ao suflê, que deve ser servido “assim que estiver pronto, senão murcha”.
— Esse suflê é uma delícia, levinho, todo mundo adorava — recorda Nalu, consultora de tecnologia em Paris. — Uma amiga que é cozinheira comentou que hoje em dia as receitas não têm mais essas dicas importantíssimas: “vá mexendo até engrossar”, “deixe esfriar”, “quando estiver morno acrescente as claras em neve”. Minha amiga seguiu todas as dicas e deu certo. Ela adorou a receita!
Receita da mousse de aipo apelidada de “Kolynos” pela família Paiva
Reprodução
Babiu diz que cada um dos cinco filhos de Eunice guarda memórias culinárias diferentes.
— Eu me lembro mais de um rosbife que ela fazia e um lombo de porco com purê de batatas que era maravilhoso, mas não tenho a receita — conta ela, que é psicóloga e vive em Berna, na Suíça com o marido, Daniel Keller, conhecido na família por cozinhar bem. — Quando visitávamos minha mãe no Brasil, assávamos bolos e pão integral para ela, que adorava comida suíça: batata rösti, Zürcher Geschnetzeltes (iscas de filé com vinho branco, nata, caldo de carne e cogumelos), Älplermagronen (macarrão com queijo).
Há uns poucos anos, Babiu digitou as receitas que a mãe preparava no Natal (ela guardava cópias manuscritas pela própria Eunice) e compartilhou com os irmãos. No capítulo do suflê em “Ainda estou aqui”, Marcelo escreve que, no Natal, a mãe “cozinhava os mesmos pratos havia décadas”. As estrelas das ceias e almoços natalinos, conta Eliana, eram o presunto à moda da Virgínia, um tender com batata-doce, abacaxi, melado, gim e refrigerante de gengibre (“dispensável e substituível por água”, avisa a receita), acompanhado por uma mousse de aipo (com queijo, maionese, picles e gelatina de limão) apelidada pela família de Kolynos, nome de uma extinta marca de creme dental.
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— É porque a mousse de aipo era verde e refrescante — explica Eliana, que é jornalista, mora em São Paulo e lembra que o tender era cortado com uma faca elétrica que ela herdou. — Sem Kolynos, não tinha Natal. Mesmo depois de velho, quando ela trazia a mousse, a gente delirava, batia palma: “Kolynos! Kolynos!”
O impacto do Alzheimer
As sobremesas natalinas eram bolo de sorvete (espécie de pavê) com frutas cristalizadas e chocolate meio amargo e sorvete de creme. Eunice adorava sorvete, conta Nalu. Às vezes, quando a mãe a visitava na França, as duas jantavam sorvete com chantilly, calda de chocolate e uma garrafa de vinho branco (“os garçons não acreditavam”). Eliana se lembra de que Eunice gostava de sorvete de passas ao rum (como mostra o filme) e Rubens preferia o de manga.
Eunice só parou de cozinhar no Natal quando foi impedida pelo Alzheimer. Ela também deixou receitas de estrogonofe, lombo ao leite com frutas, frango com laranja, escalope de vitela, nhoque de ricota, torta de palmito e de uma mousse de chocolate com pé-de-moleque ensinada pela amiga Danda Prado, editora da Brasiliense.
Receita de tender preparado por Eunice Paiva todo Natal
Reprodução
Crítica de gastronomia do GLOBO, Luciana Fróes afirma que o caderno de receitas de Eunice é “o retrato do que se comia nos anos 60 e 70, numa determinada classe social”. A mousse de aipo era “figurinha obrigatória nos cardápios de verão daquela época”.
— A bossa era combinar o aipo com a gelatina de limão, dava frescor, azedinho e cor — diz Fróes, lembrando que era no Leblon, onde os Paiva moravam, que se encontrava o melhor sorvete de passas ao rum. — No “strogonoff”, ela recomenda mignon e cogumelos em lata. Receita de muitas páginas, só perde para a quiche lorraine e o frango à Kiev, outros sucessos daqueles tempos.
O forte de Eunice eram mesmo os salgados. Na casa, havia fartura de frutas e pouco doce: a família toda tinha tendência a engordar (Rubens até tentou fazer dieta) e a mãe era “obcecada pela forma física”, conta Marcelo no livro. Ao acordar, ela chupava duas laranjas, comia pão francês (sem miolo) com queijo branco e tomava um café preto enquanto lia o jornal. Eliana diz que era melhor evitar interações com ela nesse horário devido a seu mau humor matinal.
Eunice foi educada no tradicional Colégio Nossa Senhora de Sion, em São Paulo, para ser uma perfeita “dama do lar”, como se dizia à época. Falava cinco línguas, cozinhava e era uma costureira habilidosa (e canhota). Manteve uma máquina de costura em todas as casas onde morou e era a modista da família, reformava até os ternos do marido.
— A minha mãe ficava lá costurando e de repente soltava um riso frouxo. Eu perguntava o que era e ela dizia que tinha lembrado de alguma coisa que o meu pai tinha dito. Ele era muito bem-humorado — recorda Eliana.
Os Paiva gostavam de receber amigos para festas e jantares (hábito destacado no filme). Eunice era uma anfitriã impecável. As filhas ainda se recordam das toalhas de linho, dos talheres de prata e dos copos de cristal. Eliana é quem punha a mesa e diz que o cardápio dessas reuniões era simples e elegante. De entrada, havia melão com presunto (outro clássico da época), couve-de-bruxelas e batata sautée. O prato principal costumava ser carne (ou estrogonofe). Embora no filme Rubens aparente gostar de uísque, nem ele nem Eunice tinham o costume de beber. Serviam vinho aos convidados e às vezes tomavam Campari nos fins de semana.
Eunice aprendeu a cozinhar acompanhando a mãe italiana na cozinha. Já casada, ela costumava assumir o fogão nos fins de semana e à noite. As empregadas (que ela deixou de ter após o desaparecimento de Rubens) resolviam o almoço. Ela preferia fazer tudo sozinha: do menu natalino (que adiantava depois que todos tinham se deitado) à comida congelada para a família passar uma semana em Ubatuba ou Angra dos Reis no verão. Nalu atribui a essa característica “solitária” da mãe o azar de nenhum dos filhos ter aprendido a cozinhar tão bem quanto ela. Mas, ao menos o suflê, Nalu ainda pretende acertar.
— O filme estreou na França na quarta-feira e fui ver com uns 20 amigos. Agora, eles querem eu faça o suflê para eles!

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